domingo, julho 27, 2025
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A Praça dos (Remédios) esquecidos

A Igreja dos Remédios já teve dias de glória. Há um tempo, talvez em outra encarnação urbana, era o coração de uma cidade que se achava europeia, com seus lampiões franceses, seus teatros de mármore e seus bondes educados. Hoje, resta-lhe apenas o nome. E um altar de ferro, onde se deposita, não mais flores, mas corpos, corpos de carne e osso.

Em um dia de domingo, 20 de julho de 2025, o altar da cidade amanheceu com um sacrifício involuntário. Um jovem morreu nas grades da igreja. Não foi martirizado por imperadores, nem apedrejado por romanos. Morreu sozinho. De fome, vício, abandono, ou de tudo junto, o que dá no mesmo. As grades da fé não impediram a morte da esperança. E o Panteão de Manaus, como gostam de chamar a velha igreja, virou túmulo de gente viva.

Claro que a cidade acordou com indignação digital. Um vídeo viral aqui, uma nota revoltada acolá, um grito escrito no Facebook. E João Carlos, morador do Centro Histórico, disse tudo o que os sábios e os santos têm evitado dizer: onde estão os senhores da ordem, os doutores do zelo público, os iluminados das ONGs premiadas que operam milagres nos PowerPoints?

Cadê os relatórios de impacto social com selo da ONU? Cadê os planos de requalificação urbana pagos com verbas internacionais? Cadê os profissionais do Poder Público que deveriam estar, ao menos, fingindo compaixão?

Mas talvez estejamos sendo cruéis. A morte do rapaz é só uma estatística com nome. E o nome, convenhamos, já foi esquecido. Ele morreu tentando roubar fios. Fios que, ironicamente, ligam postes que não acendem mais luz alguma. Morrer por cobre, quando o ouro institucional jorra para quem sabe discursar. Uma tragédia moderna.

A praça, que já foi ponto de encontros e serestas, virou zona de guerra química. Entre pedras de crack e injeções de abandono, forma-se um exército de invisíveis, seres que dormem entre sacos plásticos, lutam contra a própria sombra e acordam, às vezes, mortos. Quer dizer, não acordam.

E pensar que a Belle Époque se orgulhava tanto da Praça dos Remédios. Chamava-a de “Paris dos Trópicos”. Hoje, parece mais o porão do Titanic: afundando com música, discursos e champanhe nas cúpulas.

As ONGs continuam captando recursos e mandando relatórios bilíngues sobre “ações de impacto em comunidades vulneráveis no entorno de sítios históricos”. Tudo muito chique, bonitinho, tudo muito premiado. Só não se sabe onde exatamente está esse impacto. Porque na calçada, só o que se vê é miséria e seringas.

E o Poder Público? Bem, esse está elaborando um plano, pois sempre há um plano. Geralmente em PowerPoint, com transições elegantes e promessas em negrito. O Poder Público, por meio de seus órgãos de assistência social, exibe metas. O órgão de segurança, por exemplo, manda a PM dispersar os zumbis humanos com spray de pimenta.

Todo mundo se diz sensível à causa. Os poderes ditos de justiça emitem notas, providenciam estudos e lamenta profundamente a situação. Manifestam pesar, e pronto, só isso.

Em meio a tragédia, o Centro Histórico de Manaus apodrece como um velho com Alzheimer: esqueceu quem foi, não reconhece mais ninguém e murmura palavras desconexas.

A morte do rapaz nas grades da Igreja dos Remédios não é um ponto fora da curva. É a curva inteira. É o espelho. É o retrato sem moldura daquilo que ninguém quer ver, mas todo mundo já sabe.

É o escândalo que nem a sociologia mais séria consegue explicar, até porque a explicação é brutalmente simples: corrupção, omissão, hipocrisia e indiferença.

E como bem disse João Carlos, morador do Centro: aqui, já não se vive, aqui se sobrevive, ou se morre encostado em uma grade.

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