Assim como no meu futebol da infância, o folclore “bovino” tem decisão heterônoma
*Gerfran Carneiro Moreira
A minha primeira experiência em julgar a vida alheia foi aos oito anos. Na flor da infância, eu já talvez me revelasse bem, inclusive minha clara pouca coordenação motora. Meu futebol não era nada bom. Então, o que me restaria?
Meus colegas, então, acharam uma solução para eu não ficar “café com leite”. Eles, aliás, primeiro descobriram que o futebol da hora do recreio não daria certo sem alguém para aplicar as regras. Precisavam de um “juiz”, um árbitro…
Escolhido pelos colegas, eu me esmerei… Fiz uns recortes de cartolina amarela e vermelha, pedi do meu pai um apito de papelaria e alguma outra indumentária que não me volta à memória agora. E fui à brincadeira.
Para não me alongar, conto a todos que a experiência só durou dois recreios. É que, no segundo dia, eu resolvi usar o cartão vermelho… Sim, no meio desse segundo jogo, diante de uma falta que interpretei como violenta, decidi expulsar um coleguinha do jogo. Era caso de expulsão? Foi excesso de rigor? Quem poderia dizer?
Nunca mais me chamaram pro futebol, nem para arbitrar jogo nenhum.
Até aqui já foi um conto. Mas o que isso tem a ver com folclore? Ontem, saiu o veredicto do Festival Folclórico de Parintins, a incrível disputa entre os “bois”. Lá só há duas opções: ser campeão ou ser vice. Com apenas dois concorrentes, num episódio de zero ineditismo, o perdedor se revoltou com o resultado. Seus dirigentes, inclusive, em rompante de falta de esportividade, saíram do recinto da apuração, xingando o árbitro, no caso os jurados, as pessoas que tinham de aplicar notas numéricas, de 0 a 10. Os perdedores, da associação chamada “contrário”, de cor predominante azul, alegam que foram muito superiores, que fizeram tudo com muito “capricho” e que não mereciam perder para o outro grupo folclórico, conhecido como Garantido.
Está convencionado, porém, desde que o festival tem seu formato atual, que a decisão de quem ganha e quem perde está entregue a um grupo de jurados, escolhidos, em tese, dentre pessoas entendedoras de arte, cultura, folclore, música, etc. Desde que eu presto atenção para a festa parintinense, nunca houve satisfação unânime com as decisões desses árbitros. Normalmente – para surpresa de ninguém – quem perde saiu com raiva, chamando os jurados de ladrões, corruptos, despreparados e assim por diante. Os “contrários azulados” têm até a tradição de sair fora da sala de apuração no meio da sessão, ato que se vai acrescentando a sua fama de “boi fujão”.
A pavulagem parintinense tem mesmo o seu quê de Rousseau e de Montesquieu. Assim como no meu futebol da infância, o folclore “bovino” tem decisão heterônoma, pois nunca mesmo ia dar certo uma competição sem mediação. Quem vai ganhar? Na guerra, no estado de natureza hobbesiano, ia ganhar quem fosse mais forte, quem matasse o outro primeiro, o boi que tivesse chifres mais fortes etc. A necessidade de ordem ou o temor do chifre – próprio ou alheio – pode ter motivado terceirizar a decisão a pessoas em tese equidistantes dos concorrentes.
A convenção entre Garantido e “contrário” para que a decisão se dê por um júri conhecido antecipadamente implica, como cláusula subalterna, a aceitação do resultado. Um e outro sabem – e precisam estar preparados para isso – que podem ser campeão ou vice. Isso é um verdadeiro “contrato social”, um índice da alta condição civilizatória que vigora na Ilha Tupinambarana. Em tempos não tão remotos, eu aprendi a admirar a rivalidade entre os bois por sua altíssima civilidade. Casais que torcem separados, a cidade dividida com charme cromático único, amigos que se zoam sem que isso nunca interfira interfira na fraternidade. Mas eis que, agora, assim como torcedores de futebol que reagem com violência à derrota esportiva e os políticos que não aceitam derrotas eleitorais, “contrários” inconformados ameaçam até judicializar o resultado folclórico.
Seria cômico se não fosse ridículo. Insatisfeitos com a arbitragem, os vice-campeões querem levar o caso à Justiça. Dizem ter dossiê contra uma jurada, que, segundo eles, teria, com o dolo para ajudar os campeões encarnados, aplicado notas baixas (uns 9,8 e 9,9) a alguns de seus itens.
Estou já pensando nos argumentos, nos pedidos e na causa de pedir…
Excelência, esse 9,8 é injusto, o guindaste valia 10!
Srª. Juíza, o levantador de toada do adversário já não canta mais Vermelho como há trinta anos, não poderia ganhar 10.
Nobre julgador, o amo do boi rubro cometeu injúria ao nos acusar de sermos monárquicos, de não fazermos eleição.
Rogamos a V. Exª que julgue procedente o pedido, conceda a nota DEZ a todos os itens do autor e o declare campeão do festival.
O pedido também pode ser o de anular o certame, algo comum nas ações judiciais contra concursos públicos. Um pedido consecutivo poderia ser o de o juiz nomear jurados honestos, segundo um critério – sabe Deus qual – que estará no cérebro do juiz. Nesse caso, o juiz também teria de designar um trio de datas para o novo festival. Resta saber se as vibrantes alegorias do “contrário inconformado”, com sua tecnologia do Vale do Silício, são reutilizáveis e se seus itens “gente” terão energia para o novo embate. Dizem, por exemplo, que o amo do boi é até demissionário… Outros estão com as barbas de molho, amargando notas menores mesmo nos anos em que a associação se sagrou vitoriosa.
Uma dificuldade extra do caso seria encontrar um juiz não suspeito no Amazonas… Poucos são isentos nesse tema. O processo ia parar no STF, cujo presidente, pelo que soube, esteve no Bumbódromo e manifestou preferência, algo meio que inevitável. Vai que sobra para o Ministro Alexandre de Moraes julgar o festival…
Mas, enfim, age a associação “contrária-vice” como meus coleguinhas de terceira série. Assim como estes expulsaram o árbitro que era o convencionado para impor as normas, ela, a “contrária”, quer implodir a convenção de que quem resolve o festival é o corpo de jurados. Se há defeito no modo de escolher os jurados, na norma sobre impugnação, na competência para julgar a impugnação etc, isso é tema para o próximo festival. O de agora já foi definido conforme as regras vigentes.
Acatar decisões, sejam elas as do futebol da escola, das competições esportivas, do Poder Judiciário, do festival de cinema, do festival folclórico, é uma exigência da boa convivência social e do direito contemporâneo. É mau o exemplo do Caprichoso, nome que finalmente cito para afagar meus amigos contrários, sempre, claro, mais amigos que contrários.
É importante que o conflito do folclore morra no folclore! Vida longa ao Festival! E que venha o título 34…
Gerfran Moreira
(*) Com informações da assessoria
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